O LIVRO DA MINHA VIDA por Mário T Cabral (professor de Filosofia)

Há muitos anos que tenho a resposta estudada para a ocasião em que me colocassem esta pergunta: «Qual é o livro da tua vida?». Nas entrevistas de fantasia que imaginamos para nós próprios, a minha resposta era uma graçola do género: «A Bíblia está excluída da lista, não é verdade?!».

Agora, que a pergunta ocorre, continuo a excluir a Bíblia, precisamente pelo facto de ela ser o fundamento do meu existir; aliás, é por uma razão análoga que não é referida nas bibliografias; pressupõe-se que é o chão da cultura ocidental e, portanto, está ao nível mais radical dos alicerces.

Entretanto, pensei na infindável lista do já lido; e não é menor a lista do que tenho ainda para ler, o que é uma alegria e uma esperança. Tenho, no computador, uma relação de títulos e de autores, para não me esquecer, pois não gosto de ver muitos livros comprados, à espera. Sinto um embaraço grande quando o monte à minha cabeceira ultrapassa mais de dez.

São muitos os livros que me marcaram para sempre. Ainda pensei neste e naquele mas acabei por optar pela sinceridade absoluta: não, não vou referir a Bíblia, mas não posso passar por cima deste facto: o livro da minha vida é o livro das minhas horas.

É muito íntimo o que vou contar, mas pareceu-me que mereciam a Verdade.

Um «Livro das Horas» é um livro de orações. Há belíssimos exemplares, que nos chega-ram da Idade Média, cobertos de iluminuras deslumbrantes, verdadeiras obras de arte vendi-das a alto preço. O meu é simples, como convém a um franciscano; são quatro volumes, que se usam conforme a época do ano. Trazem fitas, que marcam as diversas horas, os dias da sema-na, as semanas do mês, as quadras do ano, o santo do dia e as diversas partes da leitura. É um ritual complicado, a princípio. Para além das fitas, dá jeito ter um par de pagelas, que evitam contratempos. Tem uma bolsa preta de cabedal, com um fecho, o que é um fascínio um tanto mágico e infantil, para mim.

Anda sempre comigo.

Chama-se «Livro das Horas» porque é lido a várias horas do dia, marcando o ritmo da vida e do trabalho. Também é chamado «Breviário». O nome mais exacto é «Liturgia das Horas». O nosso (dos Terceiros Franciscanos) chama-se «Vida e Oração». As Ordens religiosas têm o dever de o rezar, o que é o nosso caso. Mas, acreditem, por favor: está longe de ser uma obrigação, dado o gosto que dá!

Achei útil colocar nesta resposta um desenho que ilustra estas paragens dos meus dias. Logo de manhã, antes de começar a trabalhar, é a hora de LAUDES, que quer dizer: “Alegria por estarmos vivos em mais este dia»; lembram-se daquela cantiga de amigo: «Laudemos, irmanas, etc.»? Costuma ser bem cedinho, pelas sete horas, mas pode ser um pouco depois. O que não tolero é começar a trabalhar sem esta meia-hora de encontro com o meu livro.

Depois segue-se a HORA INTERMÉDIA, que são três, com o nome das horas pelo relógio solar: TÉRCIA (nove horas), SEXTA (meio-dia) e NOA (três horas da tarde). Não é obrigatório parar em cada uma delas, porque uma pessoa que trabalha pode não conseguir arranjar tem-po, sendo que são mais rápidas (uns vinte minutos, por aí). No meu caso, estou em aulas, mui-tas vezes. Por isso, pode parar-se uma só vez: ou antes do meio-dia, ou ao meio-dia, ou o mais próximo do meio-dia, conforme a tarefa que se tem em mãos. Comigo, é o meu horário de professor que governa esta hora, mais do que as outras.

Ao final da tarde são as VÉSPERAS, mais uma meia-horita com o meu livro nas mãos. O que mais gosto é de fazê-lo no convento de São Gonçalo, com as minhas irmãs, antes da missa. Há um ritmo próprio de leitura, marcado com um asterisco, no final de alguns versículos: agora lêem os do lado direito/agora lêem os do lado esquerdo. Segundos de espera para todos parti-rem ao mesmo tempo. À Sexta, é sempre com os franciscanos, na ermida de Santo Cristo, mesmo colada ao museu de Angra. Não sou de viajar mas, sempre que o faço, é a hora mais adequada a rezar com os outros, porque já ganhámos o dia; há sempre um convento perto, descobre-se sempre uma igreja onde há um grupo de fiéis a rezar em grupo.

Deve procurar-se, a meio da manhã, sempre que possível, parar para OFÍCIO DE LEITU-RA (não é lindo, o nome?!). Já é fácil de compreender que nem sempre é possível. Pode ser a meio da tarde. Pode ser colado a uma das horas intermédias… às vezes é complicado, às vezes penso que sou uma espécie de atleta de alta competição, a arranjar pedaços de tempo para treinar. À noite, antes de me deitar, rezo COMPLETAS. O nome fala por si.

Como já se pode concluir, não poderia citar outro livro que não fosse este. Estaria a esconder algo do qual não tenho vergonha nenhuma, bem antes pelo contrário, me enche o dia de ritmo, como se a minha vida fosse uma trança de tempo-eternidade-tempo. Tem um quê de brincadeira de criança, admito, tem um quê quase de vício… É um êxtase. As correrias que dou, por vezes, para chegar a horas às minhas horas! E tenho de andar à procura dum lugar sossegado, muitas vezes. E quando chego lá - outra pessoa a fazer não sei o quê! Ou então entram, e apanham-me em flagrante! É mais divertido do que embaraçoso.

Como já sei muitas orações de cor, vou “ganhando tempo” quando ando a pé, ou quan-do vou na urbana, ou quando estou à espera da vez nos correios e no dentista. Reparem: não posso perder tempo. Deixei de me cansar de esperar, pois agradeço quando tenho de esperar… há sempre uma oração que ainda falta!

Eu sei que aldrabei o jogo desta pergunta. Não falei dum romance que se lê uma vez apenas. Não referi a obra do filósofo que mais me marcou. Não disse qual era o meu poeta preferido. Mas eu falei dum livro! Os outros livros passam-me pelas mãos – este está-me sempre nas mãos! Ele tira-me desta ilha pechinchinha e põe-me em contacto com a Eternidade e com os homens mais inteligentes dos outros séculos! É a minha porta de Ali Babá! De repente, estou fora deste mundo, onde sou mais eu. E, quando volto do século I d.C. ou do século V, a.C., quase sempre venho mais bondoso e feliz.

Se não vier, algo correu mal na minha viagem interestelar.

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