Feliciana, a Lebre Ilusionista
Se há pombos que são correios, cães que são pastores, vacas que são leiteiras (diz-se ou não se diz ?uma vaca leiteira"?), bichos que são carpinteiros (diz-se ou não se diz ?bichos carpinteiros"?), porque não há-de haver lebres que sejam ilusionistas?
Pois. Mas esta lebre não era de circos. Preferia trabalhar sozinha, numa clareira da floresta, transformada pela numerosa assistência bicharal em pista de espectáculos circenses.
Vinham todos e até a toupeira, tão fraca da vista, se estarrecia, na primeira fila, com as artes mágicas da lebre Feliciana.
- Destas artes e manhas não sei eu... - confessava a raposa, que nunca perdia uma matiné.
- E ainda bem que não sabes - comentava, ao lado dela, a galinhola. - Porque se soubesses não havias de tirar bom partido da arte...
- Schiu! - irritavam-se os espectadores da frente. - Deixem actuar o artista.
E valia a pena ver. Da cartola da Feliciana, colocada em cima da mesinha tem-te-não-caias, saíam fieiras de lenços, presos uns aos outros, quando há bocadinho para lá tinham entrado um por um e todos deslaçados.
- Desconfio que ela mete um rato dentro do chapéu, o rato Fosquinhas, que ata os lenços uns aos outros num abrir e fechar de olhos - observava de senho carregado o javali.
- O rato Fosquinhas sou eu - respondia-lhe uma voz do meio do público. - Sou eu e garanto-lhe que nunca me meti no chapéu de ninguém.
- São artes mágicas que só ela sabe - concluiu a coruja, que para estas coisas nunca fechava os olhos.
Sim, só a lebre sabia e por isso das suas artes tirava bom proveito. Onde aprendera? Como aprendera? Isso era mistério que a Feliciana não desvendava. A um artista ilusionista não convém fazer grandes revelações acerca das suas habilidades.
Mas, quando começava a época da caça, a lebre, por razões óbvias, não conseguia vender muitos bilhetes. Os bichos refugiavam-se nas suas tocas, e por mais que a Feliciana anunciasse que o espectáculo não sofria interrupções nem havia que temer motivos imprevistos, a bicharada preferia ficar em casa. É que andavam os ares muito turvos, muito pesados, e cheirava a pólvora a milhas de distância.
Ela não desistia. E mesmo que o único espectador visível fosse o rato Fosquinhas, a lebre Feliciana, na sua clareira, com a cartola em cima da mesa treme-treme, não desistia do espectáculo.
Havia, no entanto, quem gostasse de apreciar as habilidades da lebre de borla, escondido nos matagais à roda da clareira. Era o caçador forunfunfor, triunfunfor...
Nessas alturas, ao aproximar do perigo, o rato Fosquinhas dava o sinal, fugindo a sete pés, e a lebre Feliciana, num salto cheio de elegância, mergulhava para dentro da cartola.
Perdiam-se no ar os tiros e, quando o caçador, ainda atarantado da presteza da lebre, metia a mão na cartola, julgando trazer a lebre presa pelas orelhas, vejam só o que lhe saía em sorte... Uma fieira de lenços e bandeirinhas, como se fosse um arraial...
Por António Torrado e Cristina Malaquias,
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