841
Agora, diz-me que não consegues ver o mundo daqui.
A cegueira dos vizinhos, os gritos na cozinha, todas
as pequenas luzes que se acendem perto
onde dois homens se reúnem em seu nome;
os placards, os outdoors, os néons,
todas as palavras que não souberam inventar;
a ponte, a estrada, o bilhete que diz
que ninguém dormirá hoje em casa
e o pedido de desculpas do farmacêutico à mulher
pelo fármaco para as dores
de ter de ser.
O planeta que lamentamos não chegar a ser nosso está
certamente
a lamentar-se de outra coisa qualquer.
Porque é que te interrogas? Porque é que ainda
te debruças sobre as lutas que não foste lutar? Há
duas coisas esquecidas na mesa-de-cabeceira
do teu quarto da infância:
a infância e
o dossier com o projecto para aquilo que sonhavas crescer.
Que importa, agora, a parede e o papel de parede
com que forraste a vontade de ser outra coisa?
Os arqueólogos conduzirão as suas investigações e
os astronautas dir-te-ão como pareces do espaço.
No papel de carta da carta que nunca escrevi
ninguém poderá ler o que quer que seja.
E mesmo assim haverá alguém
todos os dias
à espera dessa carta
à espera de uma carta concreta
dizendo coisas concretas
destinadas, especialmente,
a ela.
De que vale, então, escrever?
Que coisas mudariam se fosses tu junto a uma daquelas luzes
e não tu aqui, agora, a olhá-las?
Alguém se debruça à janela e logo
irrompe adentro e
fecha a vidraça
e ecoa um breve toque de metal pela noite.
Se espera uma carta,
ao menos envie o endereço.
O meu é fácil:
Heartbreak Hotel
ao teu lado
quarto, 841,
donde se avista o mundo possível.
Alexandre Borges, in Heartbreak Hotel, 2005
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