O rato de Alexandria era um rato como qualquer outro. Tinha pelo cinzento e pequenos olhos castanhos. Gostava de comer queijo e de dormir longas sestas em recantos resguardados da investida de gatos famintos que povoavam a cidade.
Alexandria era, nesse tempo, uma cidade imensa onde se juntavam gentes vindas de todo o mundo. Tinha avenidas largas e casas de vários andares, templos grandiosos e belos jardins onde se encontravam os poetas e os filósofos para discutirem os mais variados assuntos.
Ratos também os havia de todas as partes, mais gordos uns, mais magros outros, mas todos igualmente atarefados nas andanças que faziam em busca de alimento e de local seguro para dormirem.
O rato de que fala esta história morava num sítio muito especial: a Biblioteca de Alexandria, onde havia milhares de pergaminhos e papiros, contendo todos os conhecimentos que os homens tinham até então conseguido acumular e passar para escrito.
Um dia, não tendo nada para fazer, começou a passar por cima das folhas cobertas de estranhos carateres e, em vez de as roer como faziam os outros ratos, procurou descobrir se juntos faziam sentido. Foi assim que se transformou no primeiro rato a saber ler. Quanto a escrever, embora o pudesse tentar, era bem mais difícil, porque não conseguia segurar nas patas dianteiras a pena ou o estilete com que as letras eram desenhadas. Mas não se sentiu por isso inferiorizado.
As suas visitas aos jardins da cidade começaram a ser cada vez mais curtas e espaçadas, porque preferia ficar na biblioteca a ler tudo o que estava escrito sobre astronomia, geometria, medicina e botânica. Desta maneira, tornou-se, sem esforço e com visível prazer, um rato sábio.
Muito quieto, nos recantos das amplas salas da biblioteca, assistia às animadas discussões que ocupavam, durante dias inteiros, os cientistas e os filósofos de Alexandria. Às vezes, apetecia-lhe dar a sua opinião, mas faltava-lhe coragem e atrevimento. “Que irão eles pensar de mim se me puser para aqui a dar sentenças com a minha fraquinha voz de rato?” – interrogava-se ele, sem nunca encontrar resposta que lhe desse alento para falar.
Conhecia todos os grandes sábios do seu tempo e, à medida que os ia conhecendo, ganhava admiração por eles e ficava com pouca paciência para ouvir as deslavadas conversas dos ratos seus irmãos.
- Com a mania de que sabes tudo, tornaste-te vaidoso e convencido – foi com argumentos como este que os outros ratos de Alexandria o começaram a afastar dos seus convívios e brincadeiras. – Não gostamos de ratos sabichões – costumavam acrescentar, para não lhe deixarem grandes ilusões quanto à possibilidade de ser aceite nos seus círculos. Mas ele não se importava porque preferia a companhia dos sábios da biblioteca e dos pergaminhos onde se guardava toda a sabedoria da sua época.
“O que eu gostava”, pensava ele com os seus bigodes, “era de convencer os outros ratos de que aprender é tão bom como roer.” Ilusões.
Os outros ratos, por mais que ele tentasse, não se deixariam convencer. Que lhes interessava saber a posição das estrelas, a localização dos órgãos do corpo humano ou a lógica dos números?
De leitura em leitura, foi ficando cada vez mais sábio e, ao mesmo tempo, envelhecendo sem quase dar por isso. Embranqueceram-lhe os pelos do bigode e começou a sentir dificuldade em subir as altas escadas da biblioteca. Mas envelheceu com gosto, repleto de conhecimentos fantásticos sobre a vida, a natureza e o mundo.
Para além das discussões dos filósofos, gostava da geometria e da astronomia. Houve até um dia em que conseguiu subir até ao observatório da biblioteca, avistando dali, na imensa noite iluminada, as estrelas distantes das outras galáxias.
- Rato sábio não é um rato! – diziam-lhe em tom de chacota os outros ratos quando, uma vez por outra, ia até ao jardim apanhar um pouco de sol.
Durante as observações feitas com as lentes que apontavam para o céu brilhante, chegou a convencer-se de que tinha descoberto uma nova estrela e batizou-a com o nome de Alexandria. Talvez esse nome nunca tenha chegado a figurar nos grandes compêndios e tratados de astronomia, mas, se ali aparecesse, estaria associado ao nome de um rato. Um rato sábio, é certo, mas de qualquer modo um rato, minúsculo roedor perdido numa cidade imensa.
Alexandria também envelheceu. Sofreu invasões e ataques. Conheceu outros povos e governantes, e o rato sábio viu tudo e testemunhou a grande paz que a sabedoria era capaz de lhe dar.
Um dia, um grande fogo começou a alastrar dentro da biblioteca e o rato teve de se refugiar para não ser engolido pelas chamas. Antes da fuga, conseguiu juntar alguns pergaminhos e levou-os até na boca, para longe do incêndio que não parava de crescer. Um falava da circulação do sangue, outro de constelações e outro de filosofia.
Durante os anos que se seguiram, num templo que havia nos arredores da cidade, o rato de Alexandria não esqueceu nada do que tinha aprendido. Conseguiu mesmo transmitir os seus conhecimentos a ratos mais novos, que começaram a reunir-se à sua volta. Um dia, poucos anos antes de morrer, embarcou no porão de uma grande nau mercantil para outras paragens. Não se sabe ao certo para onde. O que se sabe é que, muitos anos depois, todos os ratos dessa terra sabiam ler e veneravam uma estrela estranha e longínqua chamada Alexandria.
In LETRIA, José Jorge, O livro que falava com o vento e outros contos,
Texto Editores
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