RECEITA PARA JANEIRO
(variação sobre poema de C.L.B.)
Ele o disse tendo as mãos uma a uma
Nas calças de ganga muito sujas, revelindo
Sopitando, os olhos então fechados:
-
Janeiro é o mês das crias, dos bezerros
Dos leitões, dos cachorros, das chuvas
Dos carunchos álbidos e plicados, dos que
pervagam
Anemófobos na ilusão dos clâmides
Entanguidos e agrazes. Couratos;
Janeiro é o mês dos enganos, não da agricultura, oh
não!
Por meu turno, pus as mãos uma a uma na cerca e
silenciei-me por instantes.
Estaria a falar da Morte? Quem assim deste modo
esfíngico por ele faria?
A voz saiu-me baixa, baça, branca – também
sibilina:
– Janeiro tanto pode ser o mês dos reis magos
como
O do começo de um cancro nos intestinos.
A andar sente-se melhor o mundo, mas
Só em casa a Morte nos visita, ensinando o que
interessa.
Aos meus mortos, profetizo-lhes o fim e,
depois,
Depois pinto a casa de branco, se bem que
permaneça
Sete anos de visitas dominicais ao cemitério da
Memória
Acordada com flores deste jardim que aqui
vê
Porém, não interessa onde começo, pois aí voltarei na
devida altura.
– Hã? - indagou, abandonado pelas presenças
imortais.
– Nada. Estava a falar em grego. Vou buscar dinheiro.
Ingredientes:
Caruncho: pó proveniente da acção destruidora dos
insectos na madeira
Por extensão poética em todo o acontecimento vital (“Tu
és pó…” etc.);
Álbidos: algo branco, o Poeta esqueceu-se do que
era para dizer;
Plicados: assim o mar, quando a fria
aragem;
Pervagam: sim, pervagam os poetas, como em “Deus
escreve direito por linhas tortas”, etc.;
Anemófobos: diz-se daqueles que amam o
vento;
Clâmides: denominação poética para calças de
ganga Levi’s 501 W-L31;
Entanguidos: “Este pequeno entanguido nunca há-de
ser nada nesta vida”;
Agrazes: q.b.;
Couratos: compram-se do ano anterior, depois de
curtidos
Como tudo o que nesta receita há-de entrar.
– Estava a falar em grego. Aqui está o dinheiro.
Obrigado e bom dia.
Mário
Cabral in O Meu Livro de Receitas, Ed. Pedra Formosa, 2000.
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