Poema da semana


Autogénese



Nascitura estava

sem faca nos dentes

cómoda e impura

de não ter vontade

de bater nas gentes.



Nasce-se em setúbal

nasce-se em pequim

eu sou dos açores

(relativamente

naquilo que tenho

de basalto e flores)

mas não é assim:

a gente só nasce

quando somos nós

que temos as dores;



pragas e castigos

foram-me gerando

por trás dos postigos

e um fórceps de raiva

me arrancou toda

em sangue de mim.



Nascitura estava

sorria e jantava

e um beijo me deste

tu Pedro ou Silvestre

turvo namorado

do verão ou de outono

hibernal afecto

casca azul do sono

sem unhas do feto.



Eu nasci das balas

eu cresci das setas

que em prendas de sala

me foram jogando

os mulheres poetas

eu nasci dos seios

dores que me cresceram

pomos do ciúme

dos que os não morderam;



nasci de me verem

sempre de soslaio

de eu dizer em junho

e eles em maio

de ser como eles

às vezes por fora

mas nunca por dentro

perfil de uma estátua

que não sou de frente.



Nascitura estava

e mais que imperfeita

de ser sorte ou dado

que qualquer mão deita.



Eu nasci de haver

os bairros da lata

do dedo que escapa

dos sapatos rotos

da fome que mata

o que quer nascer

e que o sábio guarda

em frascos de abortos;



eu nasci de ver

cheirar e ouvir

dum odor a mortos

(judeus enlatados

para caberem mais

mas desinfectados)

pelas chaminés

nazis a sair

de te ver passar

de me despedir

de teus olhos tristes

como se existisses.



Nascitura estava

tom de rosa pulcra

eu me declinava

vésper em latim:

impura de todos

gostarem de mim.





Natália Correia in O Vinho e a Lira
 

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